sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O crash

A manhã começou de maneira errada. Cedo demais. O sol ainda não havia nascido e o despertador ainda iria demorar umas 3 horas pra tocar quando meu telefone resolveu ter um ataque e me tirar da cama com uma série de ligações urgentes. Aparentemente Tóquio estava em colapso e todos tínhamos que estar no escritório logo para podermos decidir o que fazer antes da bolsa local abrir. Assim, pouco antes das 7, lá estava eu, sentado numa cadeira confortável à gigantesca mesa de reuniões, encarando 22 executivos prontos para a ação e esperançosos de que a maquina de café concluiria em breve seu processo de esquentar e começaria a nos prover de algo extremamente necessário para o momento.

Os ânimos não estavam dos melhores, tenho que admitir. Digamos que ninguém gosta de ser arrancado do sono profundo antes da hora, mas gosta menos ainda da possibilidade de perder dinheiro. E sabe como são as coisas com esses cracks de bolsas internacionais. Em segundos, fortunas vão embora. Pequenos grupinhos se formavam pelo critério de proximidade das cadeiras e discussões acaloradas pelos motivos dessa inesperada crise ocorriam, sendo interrompidas apenas para ouvir os novos relatórios, que chegavam com intervalos de 5 minutos.

Então, se fez silêncio. O presidente da companhia em pessoa entrou na sala. Ele, que só aparece duas vezes por semana e depois do meio dia, estava lá, pronto para orientar sua equipe de gestão frente o problema. Não que eu esperasse um grande discurso motivacional de um sujeito tão importante, mas um bom dia não mataria ninguém. Ele, porém, obviamente pensava de outra forma. Foi logo pedindo os relatórios mais atualizados e, depois que acabou de ler, perguntou ao grupo quem tinha sugestões. Todos, apreensivos pela responsabilidade, ficaram calados. Eu, por outro lado, tinha uma boa sugestão, com uma linha de ação ousada mas que poderia não apenas evitar o prejuízo como até mesmo trazer lucros. Uma grande oportunidade, para a empresa e para minha carreira. Mas antes que eu tivesse a chance de dizer qualquer coisa, um dos executivos virou pra mim e perguntou se a maquina de café já não estava funcionando. Fui verificar. Ser estagiário é um saco.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O herói

E eu, que vivia reclamando da vida, que era muito chata, nada de extraordinário nunca acontecia, nunca teria imaginado que conseguiria um pouco de ação escolhendo sabonetes na farmácia. Lá estava eu, de frente para a prateleira da perfumaria quando percebi certa agitação entre os clientes na porta do estabelecimento. Não era comigo e tentei manter minha postura anti-social de não me meter em assuntos que não são meus. Porém, o assunto alheio resolveu soltar um berro anunciando que aquela movimentação atípica se tratava de um assalto.

Seguindo as ordens daqueles que ainda não tinha visto o rosto, deitei no chão de bruços, com a cabeça entre os braços e os olhos fixos no chão. E assim fiquei por um tempo, ouvindo uma conversa entre os assaltantes sem entender o que diziam já que falavam baixo e com uma quantidade de gírias incompreensíveis para mim. Porém, aquela coisa estava demorando demais, ou o tempo estava passando muito devagar e me rendi a curiosidade de dar uma espiada em volta. Foi então que eu a vi. Uma moça, provavelmente ainda abaixo dos 30, deitada na mesma posição que eu e não muito longe de mim. Tive a impressão de que ela era bonita. Pelo jeito, um dos assaltantes também teve. Vi com o canto dos olhos um par de tênis pretos andando em direção a ela. Maldita seja a curiosidade, mas levantei um pouco mais a cabeça, apenas o suficiente para ver que o sujeito encapuzado empunhava uma pistola com uma mão e, com a outra, erguia a moça.

Meu coração disparou. Ia levar ela embora com ele. Dizem por aí que todo mundo tem seu dia de herói. O meu havia chegado. Precisava fazer alguma coisa, rápido, para salvar a honra e quem sabe a vida daquela garota. Não conseguia ver muito bem, de modo que isso deve ter sido mais um pressentimento, mas percebi que o assaltante, andando atrás dela e com a arma apontada para suas costas, iria passar bem ao meu lado. A coisa ia ser rápida. Assim que ela passasse, colocaria o pé no caminho do sujeito e ele viria ao chão. Como uma cobra, saltaria em cima dele e pegaria a arma. Antes que o resto do grupo tivesse percebido o que aconteceu, já estaria com eles rendidos na minha mira. Daí, bastava pedir para alguém ligar para a policia. E, quem sabe, ainda não conseguiria o telefone da garota? Então foi assim. Ela passou, como previsto, bem do meu lado. Ele também fez a rota que eu imaginava. Coloquei meu pé em seu caminho. Fiz com que ele tropeçasse. Porém, como não previsto, ele não caiu no chão e, quando me virei para dar o bote, apenas percebi sua arma apontada para minha direção. Senti gosto de sangue na boca. Não me lembro de mais nada.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Fale agora ou cale-se para sempre

Espiei pelo retrovisor e pude ver seu rosto um tanto quanto abatido porém de certa forma esperançoso. Ele estava fazendo exatamente aquilo que tinha pra fazer. Lutar por seu amor. Mas se quiséssemos chegar à igreja com tempo hábil para impedir alguma coisa, eu tinha que correr. Pisei no acelerador. Era um dia chuvoso, nada propício para um casório, mas o pessoal marca essas coisas com bastante tempo de antecedência e não dá pra adivinhar a previsão do tempo. O problema, é que a chuva piora o trânsito.

Costurei entre os carros vagando lentamente pelas ruas na tarde de sábado e fui trocando as marchas até conseguir colocar o carro acima do limite de velocidade. Do lado de dentro, o ambiente era de tensão. Queríamos chegar logo e cada semáforo amarelo que aparecia em nossa frente era um golpe duro para nossa esperança. Não estávamos longe, mas nesse ritmo, não ia dar tempo. Respirei fundo e decidi ignorar a lei. Furei o farol. Tentei conversar com ele mas sua cabeça estava longe. Dava pra perceber que não conseguia pensar em nada. Também, quem manda deixar pra última hora uma coisa dessas? E ainda por cima tomar essa decisão de ressaca? Não que fosse incompreensível para mim tomar um porre na noite anterior ao casamento de sua amada, mas mesmo assim, isso não ia ajudar.

Mas, mesmo com todas as dificuldades e contra-tempos, pressentia que as coisas iam dar certo. Não sei explicar, acho que era a forma como a excitação fazia meus braços tremerem segurando o volante ou a adrenalina de conseguir chegar em algum lugar com o menor tempo possível. Não sei mesmo. Enfim, o destino finalmente teria a oportunidade de dizer o que ia acontecer. Sorri ao avistar a igreja, ao final da rua. Acelerei o máximo possível e parei bruscamente na frente dela, bem a tempo de ver o rabo do vestido da noite passando pela porta principal. Ele sorriu também. Estava pronto para lutar por sua felicidade. Abriu a porta do carro com pressa, me jogou uma nota de 50 e correu para dentro da igreja. Uma senhora com algumas sacolas de supermercado fez sinal pra mim. Um passageiro atrás do outro. Isso é que é um dia de sorte!

Invasão.

Minhas mãos suavam desde o minuto em que o avião decolou. Meu coração? Estava disparado, podia senti-lo pulsando em minha garganta. O peito estava também cheio de orgulho. É um grande momento na vida de qualquer homem quando você tem a oportunidade de ajudar a defender seu país dos inimigos em época de guerra. E lá estava eu, a bordo de uma aeronave militar especialmente desenvolvida para não ser detectada por radares e soltar, se valendo do efeito surpresa, soldados pára-quedistas no campo de batalha.

O piloto anunciou que nos aproximávamos do local da desova. Iniciamos os preparativos para o salto. Depois de anos de treinamento finalmente tinham me mandado a campo. Era a primeira vez que participava de uma operação dessas e, na guerra, nunca se sabe. Qualquer vez pode ser a última também. Queria que tudo saísse perfeito mas estava difícil manter a concentração com todo o entusiasmo e o nervosismo. A qualquer instante as coisas aconteceriam, mas esperar que a lâmpada vermelha se acendesse, indicando o momento do salto, se equivalia a esperar que a eternidade acabasse.

Mas a lâmpada acendeu. Todos nós ajustamos nossos óculos de proteção e abri a porta permitindo que o vento entrasse com uma força assustadora. Era uma noite escura e fria, perfeita para a operação. 6 soldados fortemente armados e com um objetivo bem definido e crucial para a vitória de nossa nação. No mínimo emocionante poder participar disso. Me posicionei ao lado da porta, escancarada e levantei o braço. Finalmente, o momento do salto chegou. Abaixei meu braço com vigor e, juntando todas as minhas forças e meu orgulho, gritei. Vai! Vai! Vai! Vai! Vai! Vai! Olhei atentamente, mas não consegui ver meus companheiros em meio a escuridão. Era cada um por si até o encontro no solo. Uma lágrima escorreu de meu olho esquerdo. Pura emoção. Desejei sorte a todos. Precisei usar as duas mãos pra fechar a porta do avião.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

O Professor

Mesmo vestido com roupas coloridas, camisa vermelha tijolo/salmão e calça verde musgo/pântano, a figura geral é sóbria e opaca. O paletó segue a mesma linha em seus tons e é feito de um tecido grosso e quase felpudo, estampado em um padrão de pequenos quadradinhos exibindo três marrons. O pulso da mão enfiada fundo no bolso da calça é rodeado por uma tarja de couro preto com fechos dourados que segura um relógio de ponteiros. A mão livre, suja de giz, ajeita os cabelos curtos e pretos, que foram penteados ao acordar, mas lentamente rebelados no decorrer da manhã. A barba cresce rápido e agrega uma sensação de cansaço ao rosto conforme brota com voracidade no queixo quadrado. Sensação essa que é reforçada pelas olheiras e olhos apertados mesmo atrás das lentes e hastes, forçados pela leitura de muitas letras miúdas grafadas em páginas amareladas. A boca, com a musculatura bem desenvolvida durante os anos de discursos ininterruptos, expele palavras em um tom quase estridente e irritado, mas com pausas científicas entre as palavras e volume modulado, destacando corretamente as freses mais importantes e, de quando em quando, obtendo êxito em prender por mais alguns instantes a atenção da turma.

Apesar de estarmos diante desse ser vivo, com movimentos e vontade própria, mesmo que muitas vezes o vejamos apenas como mais um professor, ser desprovido de vida e de qualquer outra coisa que não seja a aula ou o cigarro e café entre aulas, a grande percepção de movimentos vem de seus pés. Em parte porque os sapatos de couro marrom são a única coisa que brilham no cenário, além da projeção das transparências no quadro negro verde, em parte porque eles trabalham muito mais do que qualquer outra coisa em atividade na sala, deslizando pelo chão e permitindo um gingado entre sua audiência e seu instrumento de trabalho. É isso ai, a dança do conhecimento sendo executada calculadamente pelo experiente homem a sua frente, que estudou muito mais do que você, sabe muito mais coisas do que você, viveu muito mais do que você... Mas você não está nem um pouco interessado nisso. No momento.

sábado, 10 de abril de 2010

O evengélico (moderado)

A camisa salmão desbotado de mangas curtas deixa a mostra os braços finos de cor parda, presos a um corpo pequeno, decorado com uma expressão sofrida. Os olhos negros inquietos se dirigem a todo instante para o relógio prateado desproporcionalmente grande. A hora da missa na tv se aproxima, mas a velocidade irrisória do ônibus lotado lhe angustia profundamente. Os dedos, com as cutículas encardidas, ajeitam o nó mal feito da gravata azul marinho de tecido grosso e a palma da mão desce discretamente para cima do peito: tempo para uma reflexão interna. Mesmo sem saber muito bem o porque, ele agradece a deus por tudo lhe deu. A vida e o minúsculo sobradinho de tijolo aparente, sem forro e com piso de cerâmica cinza desenhada em preto.

Então, subitamente, uma leve dor com intensidade crescente lhe incomoda na barriga. Era a fome. A última vez que comera, há muitas horas atrás, conseguiu comprar apenas um pão com margarina e uma xícara de café morno com bastante açúcar. Mas ele sabe que esse desconforto se arrastará ainda por bastante tempo, porque, além do trânsito, quando chegar em casa não terá muito o que por no estômago. É difícil comprar comida quando seu salário, de menos da metade do mínimo, é dividido entre as despesas do dia-a-dia e os boletos da igreja. Claro que todos aqueles milagres que via na tv enchiam seus olhos e o tornavam um seguidor fiel. Na verdade, nunca nenhum milagre aconteceu com ele, mas a esperança o fazia pagar, religiosamente, as contribuições dele, de sua falecida esposa e de seus dois netos, mesmo que esses não acreditassem em nada. Daqui algum tempo alguma coisa vai acontecer... E, se algum dia você encontrar com ele, não tem como não saber quem é: uma pessoa de bondade e sentimentos nobres inquestionáveis. E começa todas as suas conversas com porque eu sou evangélico e...

domingo, 4 de abril de 2010

O taxista

Lentamente todos os carros foram obedecendo a ordem do semáforo e parando com uma certa distância uns dos outros. Todos menos um. Um carro branco, com uma placa de táxi em cima diminuiu a velocidade bruscamente e só parou quando já estava colado no carro da frente, como se quisesse empurra-lo. Dentro do táxi, o taxista irritado com o trânsito que o atormentou o dia (e a vida) inteiro resolveu tentar relaxar enquanto estava parado no farol e, discretamente, massageou suas costas largas (e provavelmente peludas) contra a rede de inúmeras bolinhas de madeira clara que forravam seu acento. Infelizmente, para ele, toda sua discrição para esconder seu ato da passageira foi em vão, uma vez que é naturalmente um cara bruto, mas essa mesma brutalidade o impediu de perceber que fora flagrado se coçando. Seu sapato direito preto e lustroso, com uma grande fivela prateada, pressiona o acelerador e o carro se desloca mais alguns centímetros para frente. A impossibilidade de avançar lhe produz involuntariamente um acumulado de ar na garganta que sai sob a forma de um bufo quente e usa o braço, vestido pela manga curta da camisa, para dar uma leve pancadinha na janela onde está apoiado.

Seus olhos, cobertos pelas lentes do óculos escuros mais barato mas mais próximo possível do modelo policial rodoviário, percorreram pelos motoristas a sua volta, todos uns molengas que não sabem dirigir, e pararam no reflexo de sua passageira no retrovisor. Fez um comentário sobre o jornal que lia para puxar assunto e a moça, que estava lendo e não queria papo, respondeu qualquer coisa apenas para manter a cordialidade. Foi o suficiente para animar o motorista. Ele ajeitou a caneta no bolso da camisa branca, enxugou a linha de suor que se formava em seu queixo barbeado (a única parte do corpo passível de crescimento de pelos que não os tinha em abundância) e começou a contar os fatos para sua cliente. Ela não se mostrou muito interessada enquanto ele juntava todos os fragmentos de conversas que tinha tido com seus passageiros e as manchetes das principais noticias que tinha lido e que para todo mundo eram coisas isoladas, mas tinha certeza que existia uma grande conspiração e só ele tinha percebido. Conforme ele seguia animado em seu longo discurso, o destino da passageira se aproximou, ela emitiu uma opinião qualquer sobre o assunto para encerra-lo, pagou e foi embora. O taxista saiu, embora ainda estressado, contente, utilizando o novo ponto de vista que acabara de ganhar para sofisticar suas teorias, em busca do próximo passageiro.