sábado, 10 de abril de 2010

O evengélico (moderado)

A camisa salmão desbotado de mangas curtas deixa a mostra os braços finos de cor parda, presos a um corpo pequeno, decorado com uma expressão sofrida. Os olhos negros inquietos se dirigem a todo instante para o relógio prateado desproporcionalmente grande. A hora da missa na tv se aproxima, mas a velocidade irrisória do ônibus lotado lhe angustia profundamente. Os dedos, com as cutículas encardidas, ajeitam o nó mal feito da gravata azul marinho de tecido grosso e a palma da mão desce discretamente para cima do peito: tempo para uma reflexão interna. Mesmo sem saber muito bem o porque, ele agradece a deus por tudo lhe deu. A vida e o minúsculo sobradinho de tijolo aparente, sem forro e com piso de cerâmica cinza desenhada em preto.

Então, subitamente, uma leve dor com intensidade crescente lhe incomoda na barriga. Era a fome. A última vez que comera, há muitas horas atrás, conseguiu comprar apenas um pão com margarina e uma xícara de café morno com bastante açúcar. Mas ele sabe que esse desconforto se arrastará ainda por bastante tempo, porque, além do trânsito, quando chegar em casa não terá muito o que por no estômago. É difícil comprar comida quando seu salário, de menos da metade do mínimo, é dividido entre as despesas do dia-a-dia e os boletos da igreja. Claro que todos aqueles milagres que via na tv enchiam seus olhos e o tornavam um seguidor fiel. Na verdade, nunca nenhum milagre aconteceu com ele, mas a esperança o fazia pagar, religiosamente, as contribuições dele, de sua falecida esposa e de seus dois netos, mesmo que esses não acreditassem em nada. Daqui algum tempo alguma coisa vai acontecer... E, se algum dia você encontrar com ele, não tem como não saber quem é: uma pessoa de bondade e sentimentos nobres inquestionáveis. E começa todas as suas conversas com porque eu sou evangélico e...

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